O DIREITO DE AUTOR E SUA DISTRIBUIÇÃO NA RELAÇÃO DE EMPREGO (Parte 2)

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O DIREITO DE AUTOR E SUA DISTRIBUIÇÃO NA RELAÇÃO DE EMPREGO (Parte 2)

Como visto na primeira parte desse artigo (Leia agora), o legislador brasileiro não explicou na Lei nº 9.610/98 como deve ser feita a distribuição dos direitos autorais nas relações de trabalho. Especialmente quando se está diante de uma relação de emprego.

A partir dessa lacuna legislativa, pode-se analisar a situação a partir de dois pontos de vista.

CASOS EM QUE O EMPREGADO É AUTOR INDIVIDUAL

Esse é o mais complexo dos cenários e aquele que admite diversas matizes e interpretações.

Primeira pedra de toque importante para a compreensão de todo o tema é o artigo 11 da Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98):

Art. 11. Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica.

A importância desse artigo está justamente no fato de definir claramente quem é considerado como Autor.

Para o legislador, autor é uma pessoa natural (física). Logo, uma empresa (pessoa jurídica) não é considerada autora!

Já vimos sobre os sujeitos de direito autoral na primeira parte desse artigo (leia aqui).

Então tenha sempre em mente que existe o autor e o titular de direitos de autor.

Continuando.

Segundo ponto importante que se deve ter atenção é que, os negócios jurídicos sobre direitos autorais devem ser interpretados restritivamente.

Isso por força do que está no artigo 4º da Lei nº 9.610/98.

Isso quer dizer que, quando a lei for aplicada a um caso concreto, a interpretação será limitada em seu sentido. Não serão feitas interpretações abrangentes e abertas.

Ou seja, na aplicação da norma sobre os negócios jurídicos, se limitará o sentido da norma para que não se façam interpretações extensivas por parte dos operadores do Direito.

Quer ver como isso funciona na prática?

Vamos imaginar que um autor deu licença (autorizou) para uma terceira pessoa explorar sua obra audiovisual. Eles formalizam um contrato simples sem definir expressamente para qual finalidade a obra seria utilizada. Apesar de não constar no contrato de licença (ou cessão), eles ajustaram verbalmente que a obra só poderia ser utilizada no youtube, pois seu formato criativo foi desenvolvido para uso nessa plataforma.

Passa o tempo até que um dia o autor descobre que a sua obra está sofrendo cortes e essas “partes” estão sendo publicadas nas plataformas Tik Tok e Reels.

Se essa disputa de direitos for parar no Judiciário, a tendência bastante forte será no sentido de ganho do autor, pois o contrato estabelecido entre as partes não dispõe expressamente sobre quais plataformas estariam autorizadas ao uso da obra. Logo, por força do artigo 4º, como dito, a interpretação do negócio jurídico será feita de maneira restrita, limitando o uso da obra a primeira plataforma utilizada.

É um exemplo simples, mas que serve para demonstrar que, seguindo a interpretação restritiva, para cada uso da obra intelectual deve-se ter uma autorização específica.

Aliás, parcela importante dos juristas defende que a interpretação dos negócios jurídicos de direitos de autor será, não apenas restritiva, mas também, na dúvida, favorável ao autor[1].

Por fim, temos o artigo 22 da Lei nº 9.610/98 que determina que pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou.

Quer dizer, portanto, que se não houver no contrato de trabalho a cessão ou autorização, do empregado para o empregador, os direitos autorais pertencem exclusivamente ao empregado... que é o autor.

Defensor dessa linha doutrinária, MINHARRO (p.121) tece o seguinte pensamento:

“Na ausência de norma específica que retire do autor empregado os direitos patrimoniais e morais que a regra geral sobre autoria lhe confere, a ele pertenceriam, em princípio, os direitos patrimoniais ou morais sobre as obras que criou em cumprimento a dever funcional na execução do contrato de trabalho.”

Já Carlos Alberto Bittar, um dos mais importantes jusfilósofos de nossa história, entende de forma diversa. Para ele, a solução da distribuição do direito de autor na relação empregatícia, passa pela adoção dos mesmos princípios e orientações utilizados nos casos de prestação de serviços para encomendante.

Ensina BITTAR[2] (2000, p.41):

"Com efeito, na obra realizada sob prestação de serviços, ou o autor libera-se sozinho na consecução da obra (obra de produção livre ou independente em que o encomendante apenas sugere o tema ou solicita a criação), ou o encomendante colabora em sua consecução (obra em colaboração), ou ainda dirige o trabalho do elaborador (obra dirigida: o verdadeiro autor é o encomendante, de sorte que o trabalho mecânico do elaborador nenhum direito lhe traz, a não ser à remuneração ajustada).

No primeiro caso, ao criador pertencerão os direitos autorais de cunho moral, dependendo os patrimoniais dos termos do ajuste, entendendo-se o uso, em qualquer caso, restrito ao avençado, ou à finalidade precípua da obra. No segundo caso, os direitos pertencerão a ambos, em comunhão, enquanto, no último, o encomendante (que, na verdade, em casos raríssimos, pode reduzir a mero redator, ou executor mecânico, o elaborador) é o único titular dos direitos autorais.

Entende, assim, que pela subordinação existente, e pela remuneração ocorrer exatamente para o objetivo final visado pelo empregador, opera-se a transferência de titularidade dos direitos autorais de forma natural.

DA SITUAÇÃO ESPECIALÍSSIMA: DIREITO AUTORAL NO RAMO DE DESENVOLVIMENTO DE SOFTWARES

Vale a pena nos atentarmos para um fator muito importante ligado às relações de emprego no ramo de desenvolvimento de softwares.

Diversamente do que aconteceu na Lei nº 9.610/98 (regra geral sobre Direitos Autorais), a Lei específica sobre Proteção da Propriedade Intelectual de Software (Lei nº 9.609/98), disciplinou expressamente a distribuição de direitos autorais sobre o software desenvolvido sob o vínculo empregatício.

Essa é redação do artigo 4º da Lei nº 9.609/98:

Art. 4º. Salvo estipulação em contrário, pertencerão exclusivamente ao empregador, contratante de serviços ou órgão público, os direitos relativos ao programa de computador, desenvolvido e elaborado durante a vigência de contrato ou de vínculo estatutário, expressamente destinado à pesquisa e desenvolvimento, ou sem que a atividade do empregado, contratado de serviço ou servidor seja prevista, ou ainda, que decorra da própria natureza dos encargos concernentes a esses vínculos. (grifos nossos)

Nesse caso, está clara a inversão da regra geral.

Pela existência dessa lei, mais uma vez há dualidade de entendimento por parte dos juristas brasileiros.

Isso porque uma boa parcela da doutrina defende que seja aplicada essa regra dos programadores de software, por via subsidiária, aos demais casos de relação de emprego, já que a Lei nº 9.610/98 foi omissa nesse tema.

Defensor dessa linha de aplicação da regra, o professor GARCIA (2010, p.170) explica:

"Os direitos de autor decorrem da criação (no caso, pelo empregado) de obras literárias ou científicas. Tendo em vista a ausência de regras específicas no que se refere aos direitos autorais no contrato de trabalho, defende-se a aplicação analógica do art. 4º da Lei 9.609/1998, que dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador. (...) Como mencionado, admite-se a estipulação em contrário, passando a prever que os direitos pertençam ao empregado. Não havendo a referida previsão, será de propriedade exclusiva do empregado a criação que não for desenvolvida ou elaborada durante a relação de emprego(...)

O que se percebe, quando falamos em empregado ser autor individual de uma obra na relação de emprego, é que existem diversas possibilidades de distribuir a autoria da obra (e o direito autoral).

Cada caso dependerá de seus detalhes específicos para que se decida por uma linha ou outra.

O ponto comum entre todas essas possibilidades, não se pode negar, é a necessidade de que a distribuição da autoria seja tratada no contrato de trabalho. Pode-se até mesmo dizer que é uma cláusula obrigatória em todos os contratos de trabalho.

É interessante saber tudo isso, não é mesmo?

Mas no final das contas, o que importa mesmo é saber: como os juízes vão decidir o meu caso?

COMO OS TRIBUNAIS BRASILEIROS DECIDEM ESSAS QUESTÕES

Tal qual os doutrinadores, os juízes divergem no que tange à aplicação dos direitos autorais.

As decisões, corretamente, levam em consideração as peculiaridades de cada caso (mesmo que sejam muito semelhantes, cada caso é individual!) para a aplicação do direito.

Trago 2 decisões de Tribunais que, em meu entendimento, estão em conformidade com aquilo que prevê a legislação brasileira, bem como com a explanação trazida ao longo desse artigo.

A íntegra das decisões estão no link destacado nos números de cada processo:

DIREITOS AUTORAIS. RELAÇÃO DE EMPREGO. A ilustração de cartilhas e cartazes na reclamada, bem como a criação de um mascote para propaganda, ainda que realizadas pelo reclamante, decorreram do contrato de trabalho havido entre as partes e da função que o autor exercia - programador visual, sendo indevido, nessa hipótese, o pagamento a título de direitos autorais ou de propriedade intelectual. (TRT3, autos nº 0010057-83.2020.5.03.0029, 10ª Turma, Relator DANILO SIQUEIRA DE CASTRO FARIA, Julgado em 01/02/2022)

INDENIZAÇÃO NO MONTANTE DO VALOR PRECIFICADO PELA DEMANDADA, DEVIDAMENTE ATUALIZADO, RELATIVA AO DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA DE COMPUTADOR SIMER. A pretensão indenizatória do reclamante, encontra óbice na Lei nº 9.609/98, que dispõe sobre a proteção da propriedade industrial, em particular, a respeito dos programas de computador criados por empregados, porquanto a ferramenta em questão foi desenvolvida durante o trabalho prestado para a Caixa, porque, "Salvo estipulação em contrário, pertencerão exclusivamente ao empregador, contratante de serviços ou órgão público, os direitos relativos ao programa de computador, desenvolvido e elaborado durante a vigência de contrato ou de vínculo estatutário, expressamente destinado à pesquisa e desenvolvimento, ou em que a atividade do empregado, contratado de serviço ou servidor seja prevista, ou ainda, que decorra da própria natureza dos encargos concernentes a esses vínculos". (TRT4, autos nº 0021626-28.2017.5.04.0007, 3ª Turma, Relatora MARIA MADALENA TELESCA, Julgado em 11/12/2019)

Se existe toda essa complexidade nos casos de autoria individual do empregado, o mesmo não acontece no caso de autoria de obras criativas, como veremos a seguir.

OBRA COLETIVA: EMPREGADOS AUTORES

Obra coletiva é aquela criada por iniciativa, organização e responsabilidade de uma pessoa física ou jurídica, que a publica sob seu nome ou marca e que é constituída pela participação de diferentes autores, cujas contribuições se fundem numa criação autônoma (Lei nº 9.60/98, art. 5º, VIII, “h”).

Complicou é?

Mas a dificuldade é apenas aparente, quer ver?

Se você quer publicar um livro sobre um tema que você não domina e contrata (emprega) três outras pessoas para escrever, cada uma, um capítulo do livro, você será o autor do livro.

Isso acontece porque a obra (livro) só ganhou vida por (1) sua iniciativa, sendo os capítulos e abordagens (2) organizadas por você e (3) tendo você assumido a responsabilidade da coordenação e publicação.

Você foi o organizador da obra, e é a você que pertencem os direitos autorais, nesse caso.

Conforme ensina BITTAR (p.43):

"Para tanto, é necessária a reunião dos seguintes elementos: direção e coordenação do encomendante; trabalho intelectual remunerado de vários elaboradores, que produzem em equipe (assalariados, exatamente, para criar); fusão dos respectivos esforços na obra final encomendada (...). Desse modo, se, no conjunto das elaborações, se puder destacar qualquer contribuição autônoma, os direitos próprios pertencerão ao respectivo titular, sem prejuízo dos direitos sobre o conjunto.

Lembrando que essa organização pode ser feita por uma empresa (pessoa jurídica), o que lhe garante a equiparação de Autor da obra, como muito bem salientado por MINHARRO (p. 123):

"A lei, como vimos, assegura-lhe, enquanto organizador, a titularidade dos direitos patrimoniais referentes à obra coletiva feita por seus empregados, sem necessidade de qualquer contrato de cessão feito pelos empregados autores coletivos. Frise-se que isto não se aplica à obra feita por empregado em coautoria.

Nessa situação de obra coletiva, portanto, muito mais tranquila a distribuição dos direitos autorais entre empregado e empregador.

CONCLUINDO

De tudo que foi exposto nesse longo artigo, que optamos por dividir em duas partes, pode-se definir alguns importantes parâmetros que levam ao entendimento e aplicação da distribuição da titularidade dos direitos autorais em uma relação empregatícia.

O primeiro parâmetro é de que não existe na Lei de Direitos Autorais a determinação expressa de como ficam tais direitos em uma relação de emprego (salvo no caso específico da Lei de Direitos Autorais no Desenvolvimento de Software).

Segue-se, então, a recomendação de que o contrato de trabalho preveja, expressamente, como serão distribuídos os direitos autorais (praticamente uma cláusula obrigatória, como já citado). E aqui se faz necessário o entendimento correto de quem é autor e quem é titular de direito de autor.

Por fim, restou claro que o tema ainda precisa evoluir, sendo necessário um esforço legislativo para que haja, de forma mais clara e objetiva, a tutela adequada do direito de autor nas relações de trabalho, tal qual existe na Lei de Software.

Enquanto não forem tomadas estas providências, a titularidade dos direitos de autor será sempre objeto de discussões acaloradas entre empregados, empregadores, juristas e doutrinadores.

** Esse artigo é fruto de uma releitura, atualização e resumo de tema da monografia de minha autoria para a conclusão da Pós Graduação em Direito do Trabalho, pela UNIDERP-ANHANGUERA.**

 

[1] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais, p.601. 8ª ed., 2008.

[2] BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.



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