DIREITO À PROPRIEDADE: UMA BREVE ANÁLISE HISTÓRICA E A TEORIA DA NATUREZA HUMANA

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DIREITO À PROPRIEDADE: UMA BREVE ANÁLISE HISTÓRICA E A TEORIA DA NATUREZA HUMANA

Diariamente realizamos dezenas (talvez centenas...) de negócios jurídicos, sem nem ao menos percebermos isso ou entendermos o que exatamente é um negócio jurídico.

Quer ver como isso aconteceu no seu dia de hoje?

Se você foi até a padaria e comprou alguns pãezinhos, ou tomou um café, ou foi ao mercado e comprou algum produto, você realizou negócios jurídicos.

Por negócio jurídico podemos entender todos aqueles atos que praticamos que têm por finalidade a aquisição, modificação ou extinção de um direito.

Já expliquei um pouco sobre isso quando escrevi o artigo sobre contratos – que você pode ler clicando aqui.

Então, quando falamos sobre o registro de uma marca, sobre a autorização de uso de uma obra intelectual ou a compra e venda de um bem, estamos tratando sobre negócios jurídicos.

Mais especificamente, sobre o Direito à Propriedade.

Portanto, entender como funciona esse direito é importantíssimo para poder exercê-lo de maneira preventiva ou responsiva, sempre que houver uma ameaça ou efetiva lesão à propriedade.

Vamos lá?

EVOLUÇÃO DA SOCIEDADE E PRIMEIROS TRAÇOS DA PROPRIEDADE

Os primeiros seres humanos, ainda primitivos, esboçavam as primeiras linhas de uma vida em sociedade ao se reunirem em grupos. Essa “pré-sociedade” foi a forma encontrada para sobreviverem ante os perigos que a natureza selvagem representava.

Uma característica interessante desse momento histórico era de que não havia subordinação entre os membros do grupo e, consequentemente, não havia a individualização da propriedade, pois os bens pertenciam aos membros.

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Só que a ambição humana (traço peculiar de nossa natureza) muda esse cenário.

Essa ambição leva os membros mais fortes desses grupos ao desejo de concentrarem o poder em si. E o exercício desse poder era direcionado tanto para se sobrepor a outros membros, quanto sobre os bens do grupo.

Assim, a relação entre as pessoas e entre as pessoas e os bens da comunidade, passam de uma desconcentração, para uma concentração. De uma socialização, para uma individualização.

A essa transferência do foco de poder, então, chamamos de propriedade individual.

JOSÉ AFONSO, um dos constitucionalistas mais renomados do país, sintetiza essa transformação da seguinte forma[1]:

“(...) na sociedade primitiva, gentílica, os bens pertenciam, em conjunto, a todos os gentílicos e, então, se verificava uma comunhão democrática de interesses. Não existia poder algum dominante, porque o poder era interno à sociedade mesma. (...) o homem buscava liberar-se da opressão do meio natural, mediante descobertas e invenções.”  

CAPACIDADE CRIATIVA HUMANA E O SURGIMENTO DO ESTADO

O homem primitivo, para sobreviver em um ambiente hostil como era nosso planeta há cerca de meio milhão de anos atrás, começou a usar seu intelecto para criar coisas que o ajudassem a dominar o meio em que vivia.

Essa capacidade intelectual (criativa) levou o homem a construir casas, desenvolver equipamentos para caça e pesca, meios de guardar os alimentos por períodos mais longos, formas de transportar material bruto e de refiná-lo para criar utensílios mais práticos e úteis.

Além de apenas sobreviver ao ambiente hostil, o ser humano criou condições de se adaptar e de controlar a natureza ao seu redor, permitindo que deixasse a vida nômade e estabelecesse raízes.

Como já dito, o poder agora estava concentrado nos mais fortes, que se tornaram líderes e exerciam sua vontade sobre os demais.

Mas logo surgem as primeiras questões sobre a validade desse poder. Questões sobre a propriedade e compartilhamento dos bens.

Imagine se você vivesse naquela época e, para facilitar o seu trabalho no plantio ou na pesca, você acabasse inventando um utensílio (enxada ou tarrafa, por exemplo). Por que deveria compartilhar livremente esse utensílio (e técnica de uso) com os demais membros do grupo?

Tal como acontece nos dias de hoje, já naquela época, então, passou-se a um sentimento de exclusividade de uso, de propriedade individual, de ser proprietário!

A partir dessa propriedade individual, logicamente, a permissão de uso do bem ou compartilhamento do conhecimento para os demais membros resultaria em uma contrapartida para o proprietário. Um ganho. Uma vantagem.

Mas surge então a dúvida: quem validaria essa propriedade?

A resposta: surge o Estado.

Esse primeiro esboço do Estado é extremamente opressor. Lembre-se que os líderes eram os mais fortes fisicamente, e seus frutos, é claro, também tinham essa natureza.

Então o Estado tinha a função de validar o sistema hierarquizado de dominação que se impunha a todos.

A sociedade se submeteu por longo tempo a essa opressão, mas por fim reagiu e passou a lutar para garantir o mínimo de direitos e garantias fundamentais à sua existência perante o Estado.

Era a luta do criador para libertar-se da tirania da criatura.

A REVOLUÇÃO FRANCESA E SUA IMPORTÂNCIA PARA O CONCEITO MODERNO DE DIREITO À PROPRIEDADE

Antes de continuarmos a falar sobre a propriedade e os direitos provenientes dela, precisamos compreender o evento histórico chamado de Revolução Francesa.

A Revolução Francesa é um movimento que influenciou toda a estrutura política, social e jurídica do mundo ocidental.

Ocorrida entre os anos de 1789 e 1799, foi uma revolta do povo francês que levou ao fim do Estado Absolutista que imperava naquele país e que difundiu a forma republicana de governo pelo mundo.

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Um dos principais resultados desse movimento foi a redação da DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO, no ano de 1789.

Essa Declaração é um documento de consolidação dos Direitos Humanos e dos princípios que fundamentam o direito à liberdade e igualdade dos homens perante a lei.

Esse é o texto que inicia a Declaração:

Os representantes do povo francês, reunidos em Assembléia Nacional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente seus direitos e seus deveres.

Quase poético, não é?

Se você tiver interesse em ler o texto na íntegra, clique aqui.

Mas vamos continuar.

Além de consolidar os Direitos Humanos, os franceses também declararam que a propriedade é um direito natural do homem. E que esse direito não se extingue por decurso de tempo e que nem pode ser extinto à força por quem quer que seja, salvo nos casos em que haja uma comprovada necessidade pública.

Mesmo nesses casos, o proprietário deve ser previamente indenizado pela perda da propriedade.

Os franceses adotaram a Teoria da Natureza Humana, que é a linha ideológica mais aceita no meio jurídico até os dias modernos.

Por essa teoria, os direitos constantes na Declaração nascem da própria condição do ser humano, e preexistem às leis. Ou seja, não são direitos criados pelas leis dos homens. Mas são direitos que já nascem com o próprio ser humano.

MARIA HELENA DINIZ escreve o seguinte:

“(...) a propriedade é inerente à natureza do homem, sendo condição de sua existência e pressuposto de sua liberdade. É o instinto de conservação que leva o homem a se apropriar de bens seja para saciar sua fome, seja para satisfazer suas variadas necessidades de ordem física e moral.”

A propriedade assumiria como características:

  • Ser Natural, porque decorre da própria condição de ser humano e não é criada por lei (que vem apenas regular o exercício do direito à propriedade);
  • Ser Imprescritível, porque não se perde o direito pelo decurso do tempo;
  • Ser Inviolável, porque, via de regra, o titular do direito não pode ser privado sem sua vontade.

Apesar de mais de 200 anos terem se passado, as compreensões sobre o direito à propriedade estabelecidas a partir da Revolução Francesa ainda são observadas e seguidas por grande parte das Nações ocidentais, incluindo o Brasil, sendo que adaptações e modernizações foram implementadas ao longo do tempo.

O professor FLÁVIO TARTUCE[2] destaca outras características que foram sendo adotadas para a propriedade, tais como:

  • Direito Absoluto, porque, via de regra, pode ser oposto contra qualquer pessoa (erga omnes). No entanto, esse absolutismo é relativizado em algumas situações, já que no Brasil não existem direitos completamente absolutos nos dias de hoje;
  • Direito Exclusivo, porque um bem não pode pertencer, ao mesmo tempo, a mais de uma pessoa, salvo no caso de condomínio ou copropriedade;
  • Direito Perpétuo, porque, nas exatas palavras do professor o “direito de propriedade permanece independentemente do seu exercício, enquanto não houver causa modificativa ou extintiva, sejam elas de origem legal ou convencional”. Assim, em regra, o direito à propriedade nasce com a pessoa e se extingue com a sua morte;
  • Direito Fundamental, porque previsto em nossa Constituição Federal (art. 5º, XXII e XXIII), como forma de ratificar constitucionalmente os ideais do teólogos da natureza humana.

A partir dessa breve viagem histórica sobre o Direito à Propriedade, espero que se torne mais fácil entender como esse direito natural está diretamente ligado à Propriedade Intelectual, principalmente ao Direito de Autor.

O reflexo desse conhecimento nós poderemos conversar em um próximo artigo, com suas similaridades, diferenças e maneiras de aplicar na relação com clientes, fornecedores e concorrentes.

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[1] SILVA, José Afonso. P.150

[2] TARTUCE, Flavio. p.150



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